Eu assisti esse filme assim que foi lançado no cinema. Em primeiro momento, notei apenas a beleza das atrizes, a trilha, a relação entre Adèle e Emma, e evitei ao máximo ser crítica, mas muita coisa me incomodou, mesmo eu sendo “mente aberta”. Ao assistir novamente, foi praticamente impossível não problematizar, não querer debater e não querer alertar o que tu propagas como romance.
O longa frânces “Azul é a Cor Mais Quente“ combina erotismo e polêmica, e foi criado pelo diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, que deu ao público uma notoriedade que quase obscurece as qualidades do filme. O roteiro de Kechiche é livremente adaptado do romance gráfico Le bleu est une couleur chaude (2010), da quadrinista francesa Julie Maroh.
O filme se passa com Adèle (Adele Exarchopoulos) aos 15 anos, na transição da adolescência para idade adulta. Ou seja, aquele período crítico de mudanças, descobertas, experiências, insegurança e erros – um tema universal, se assim posso dizer. Todos nós passamos por essa fase, com mais ou menos sofrimento, mais ou menos dificuldades, e nos lembramos dela com variáveis doses de saudade, negação, piedade e até mesmo amnésia seletiva.
A personagem Emma (Léa Seydoux) é muito bem montada, ela passa bastante segurança a Adèle como mulher e profissional que tenta emplacar sua carreira artística, mesmo sem ter muito apoio das pessoas. Uma identidade mais construída do que de sua parceira, sexualmente assertiva, gosta de Sartre e é estilosa. Tudo isso, ou boa parte disso, se sabe apenas pelo trailer.
A trama da jovem estudante que conhece a pintora que mudaria por completo sua vida, tinha tudo para ser uma bela história sobre amor, mas também é uma visão hétero quase que distorcida do amor entre duas mulheres.
Por que falar sobre isso?
Não é todo mundo que está acostumado com isso, sejam dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher, ou o que for. Poucas vezes me senti tão desconfortável vendo um filme no cinema. Olhar ao redor e ver inúmeros homens assistindo como se fosse um pornô (inclusive fazendo você sabe muito bem o que) não é nem de longe um sucesso de crítica. É um sucesso do preconceito. Um sucesso de estereótipos. Faltou sensibilidade no olhar, assim como falta em muitos nus considerados artísticos.
O problema não é o sexo, e sim o apelo sexual. Nem em ninfomaníaca o apelo sexual foi tão usado e criticado quanto neste filme.
As atrizes acusaram o diretor, Abdellatif Kechiche, de maus- tratos. Ele diz que foi pela arte, mas eu afirmo que foi pela falta de noção.
Léa e Adèle, ambas heterossexuais, disseram a jornais e canais de televisão de Paris que haviam sofrido nas mãos de Kechiche. “Eu me senti como uma prostituta”, afirmou Léa. “Ficamos diante de Kechiche e da equipe técnica repetindo incessantemente cenas de sexo, sete dias por semana, dez horas por dia. Cheguei a ficar cansada de tanto fazer sexo.” Adèle disse que era inexperiente e se deixou manipular. “Não sabia que passaria por isso, quando assisti às cenas, me senti mal porque meus pais e meus amigos me veriam naquela situação forçada de amor lésbico.”

Léa contou que o sexo que praticaram não era 100% real. “Usávamos uma pequena prótese”, disse ao Correio da Manhã de Lisboa. “Tínhamos vaginas falsas… Usávamos uma fina membrana de silicone, um molde com a forma de uma vagina. Era um acessório perfeito, um verdadeiro efeito especial… Pode parecer um pouco chocante, mas para nós chegava a ser cansativo.” Adèle afirmou ainda que Kechiche gosta de improvisar. “Ele queria que a gente vivesse o papel. Foi uma experiência ultrarrealista. Sou como irmã de Léa, então as cenas de sexo não teriam sido difíceis de fazer, não fosse o perfeccionismo de Kechiche. Léa ficou mais chateada do que eu.”
Se a intenção era agradar héteros que aplaudem lésbicas se beijando, ele conseguiu muito mais que aplausos. Mas não agradou as protagonistas e o público que esperava muito mais do que apelo sexual em um romance lésbico.
Se você analisar bem a sociedade, saberá o motivo dessa visão: quando duas mulheres se relacionam, ALGUNS homens héteros querem se envolver na relação, sem pudor e respeito algum, ou até mesmo querem apenas assistir. Não é por acaso que o maior público do filme seja de pessoas que não acreditam no amor sem distinção de sexo, homofóbicos mesmo. Você raramente vê isso acontecendo com homens, nunca escuta que é lindo ver homens se beijando, ou vê mulheres pedindo para entrar no meio do beijo deles. Mas quando duas mulheres se beijam a coisa muda. Quando um filme mostra o que esse tipo de gente gosta de ver, vira desrespeito com os gays. Conheço pessoas que já viram apenas as cenas de sexo de Azul é a Cor Mais Quente como se fossem retiradas do X-vídeos. Isso porque a internet está cheia de compilações sexuais da trama.
Se você for pesquisar no google agora, saberá do que estou falando. E se procurar nos filmes favoritos daquele seu amigo que jura de pé junto que ser gay é imoral, poderá encontrar o filme. Não é por nada que ele atingiu o público errado, muitos comentários em redes de cinema são do nível “mulheres lésbicas tem que ser assim”, isso porque em algum momento deram o controle para um deles estereotipar um relacionamento lésbico.
Na HQ a história se desenvolve de forma diferente, mostrando mais o lado amoroso e o aprendizado do relacionamento do que o lado sexual de Adèle, mesmo ele existindo. As próprias atrizes não se sentiram confortáveis com tais cenas. Por que eu (como espectadora) precisaria me sentir? Não preciso, não quero e não vou!
O fato é que Azul é a Cor Mais Quente não deve ser visto como um cult porn (como muitos o classificam) porque sua história não se baseia nisso. Se não houvesse uma inspiração, não estaria aqui para analisar a forma péssima que o filme foi dirigido. Talvez se tivesse sido dirigido por uma mulher, ou por um homem com mais sensibilidade do que o diretor Abdellatif Kechiche nada disso teria acontecido.
Azul é a Cor Mais Quente tinha tudo para ajudar na visibilidade lésbica, mas o que eu vi foi uma bela visão de um hétero safado sobre a relação de duas mulheres. A visão do carinha que espia pela janela. E se você não viu isso (nem com o depoimento das atrizes falando que se sentiram prostitutas) o problema de visão já não é meu.
Nem tudo é sétima arte, muitas vezes é mau gosto mesmo.
O filme não pode até não ser constituído somente de cenas desconfortáveis, possui uma trilha sonora muito boa, cenários interessantes, uma fotografia impecável, e até mesmo um bom enredo. Mas nem isto o salva de suas falhas, muito menos minimiza a sexualização exagerada das atrizes.
O que era para ser a vida de Adèle, virou apenas o retrato da vida sexual dela, de uma forma bem mais erotizada do que deveria ser. Filmes como este são o reflexo da sociedade e do que muitos pensam sobre um relacionamento entre duas mulheres, a imagem de que a relação é muito mais carnal do que sentimental. E não adianta culparmos o título, culparmos as atrizes, pois sabemos pelos depoimentos que não foi por isso que a trama ficou do jeito que ficou, foi sim pelo seu diretor.
Triste para quem vive uma relação gay de verdade, fácil para quem ama julgar.
O sexo já foi incluso diversas vezes no cinema (até mesmo com cenas reais) e nem por isso incomodou tanto. A minha crítica é sobre a postura do diretor para com seu público-alvo, e não um banho de moralidade. Faltou respeito com as atrizes. Faltou respeito com o relacionamento gay. Faltou respeito com o público. Nenhum diretor deve violar o limite ético de suas atrizes, menos ainda estereotipar uma vivência que ele não teve. Isso é mais um apelo pela visibilidade gay sem estereotipação do que uma resenha.
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