Assassin’s Creed é o tipo de coisa que me é muito afetuosa. Eu joguei os primeiros jogos, eu segui o trabalho inicial, a evolução do conceito, a correção dos (raros) problemas. O game não trazia consigo a invenção da roda, ou a reimaginação de seu papel ou de suas utilidades, pelo contrário, ele fazia com que cada aspecto definido previamente funcionasse da melhor maneira possível. E isso não significa estar livre de falhas e, principalmente, limitações técnicas – e vou além: dinheiro.
O game, em seu primeiro título, apenas Assassin’s Creed, foi tão subestimado enquanto título, que mal figurou entre os principais lançamentos. A publicidade e informações prévias que rondavam o jogo eram tão escassas e fracas, que pouca gente soube do que se tratava quando ele finalmente saiu para o grande público.
A surpresa veio exatamente da excepcional recepção do público, que tratou de aproveitar as brilhantes (e simplíssimas) mecânicas do jogo e imergir no enredo, que tinha a cara exata de um piloto de uma série para TV: uma história interessantíssima, relativamente redonda, personagens misteriosos e cativantes (por mais que faltasse certo charme a sua grande maioria) e pontas propositalmente soltas onde próximos episódios (jogos, no caso) deveriam se concentrar. E funcionou, claro.
Altaïr, o primeiro assassino com quem temos contato, tem movimentos um pouco travados, executa ações de maneira desajeitada e, para os que não lembra, não nada – aliás, não pode, de jeito nenhum, entrar em contato com a água. Porém, o conceito da profundidade de um personagem que deveria regressar aos conceitos básicos, livrar-se de sua arrogância e premeditações intelectuais, garantiram a identificação com um avatar… humano. E você compra as motivações, a personalidade, a inquietude, a “missão” de Altaïr, guia e é guiado pelo mundo ao seu redor (um mundo mais ou menos aberto e limitado, mas não por isso menos impressionante).
Além disso vem o conceito da identidade árabe, da cultura persa e do imaginário do oriente próximo. Altaïr e o credo dos Assassinos se baseia em uma série de padrão de comportamentos islâmicos. Os nomes são árabes, persas, turcos. A filosofia é embasada em preceitos muçulmanos e em um grupo de assassinos que existiu de verdade. A extrapolação ficcional não é absurda, ela é aceitável.
E então saltamos para o que foi o estouro da série (e os meus preferidos, claro): a trilogia de Ezio. Os desenvolvedores conseguiram evoluir os conceitos do “piloto” e mais uma vez surpreenderam em um enredo brilhante. Mais do que brilhante, Assassin’s Creed se definia a partir daquele momento por dois pontos fundamentais: história e, principalmente, seus personagens. Ezio deve ser um dos personagens digitais mais humanos já criados. Você literalmente cresce com o assassino florentino. Sofre suas perdas, sente sua sede quase física por vingança – e aprende a lidar com ela. Ezio traz a curva de aprendizado balanceada de maneira artesanal: por mais que existam muitos elementos no jogo (e a cada título surgem mais e mais elementos), você consegue aprender – porque você aprende de maneira orgânica ao lado do personagem.
Sua sede de vingança desaparece conforme a sede de vingança de Ezio desaparece. Sua necessidade por justiça, conhecimento, equilíbrio e restabelecimento da Ordem dos Assassinos são as mesmas que o personagem. Há uma sintonia natural – por mais que as coisas pareçam complicadas. Assassin’s Creed chegou ao seu auge no desfecho da trilogia de Ezio, ainda mais com todo material em transmídia lançado, desde HQs, curta metragens, livros e, desde aquela época, a promessa de um filme em live-action. A teia de assassinos e suas histórias se tornou mais complexa. Ela se ampliava da Rússia à Mongólia, de Roma à Pérsia, do Brasil aos Estados Unidos.
A partir desse ponto foram fincadas algumas… promessas. E alguns comportamentos a respeito da franquia que, sim, continuaria por tempo indeterminado. As decisões que seriam “canônicas”, chamemos assim, garantiriam a originalidade e inesperabilidade da série. O embate entre os assassinos e seus antagonistas, os templários, tornar-se-ia algo bem menos maniqueísta e mais sombrio – não haveria mais algo tão caricato e evidente de um embate bem e mal (seria justamente o aproveitamento de parte do enredo do primeiro game).
As localidades (e suas culturas, claro) fugiriam ao máximo do esperado pelo senso comum, assim como os períodos de tempo Nada de assassinos na China ou no Japão. Ocidente apenas em momentos históricos interessantes e propícios, mas nada de Revolução Francesa (pois é). A ideia seria a de trazer o “novo” e mostrar que o mundo é bem maior do que se imagina – e que o desenrolar da história dos assassinos estaria por em todos os lugares. E finalmente, bem, talvez a regra não-declarada que seja a mais polêmica – e que esteja mais relacionada com a postura da Ubisoft do que com uma de suas sagas: o jogo deveria receber polimento e acabamento a ponto do lançamento significar sua versão final.
O “problema” em Assassin’s Creed III não foi exatamente a quebra de tudo que havia sido planejado ou designado até então. O já mencionado auge atingido na trilogia de Ezio, tornou complicado o desvencilhamento da série da imagem do italiano casanova e de sua história. Qualquer próximo título dentro da saga deveria ser igual ou melhor que seu antecessor – o que, sem sombra de dúvidas foi a “falha” do game que contava a história de . Não me levem a mal, Assassin’s Creed III não é um jogo ruim. Caprichei nas aspas ao mencionar as situações problemáticas, claro. Mas eu não seria justo se não afirmasse (categoricamente) que, apesar de não ser ruim, o game é fraco. É um jogo bonito, de ambientação realmente nova e diferenciada. O background é relativamente alterado, a base de personagens muda.
Há algumas novidades. Mas o primeiro título consegue, mesmo assim, tendo todas as suas limitações e problemas, superá-lo. Temos um jogo confuso, que não sabe exatamente em que focar e para onde ir. Muitos disseram que o game se tratava de uma espécie de ponte de enredo para sair da história de Ezio e entrar em um “novo terreno”, apresentando novas personagens e tramas. E talvez AC III tenha realmente essa carga, a de uma “ponte”, e não de um título central. Infelizmente, mesmo assim, nada impediu que o jogo (que, admito, é bastante divertido) não passasse de “ok”. A grande “surpresa” foi a do personagem central ser nativo-americano, e manter grande parte de seus costumes em primeiro plano durante o enredo – um dos poucos, porém valiosíssimos pontos altos.
Chegamos em Black Flag, com mais uma vez um personagem carismático – porém sem o nível de identificação e imersão previamente alcançados. A história é bastante inchada e cheia de buracos, clímax arruinados, erros históricos (como o período de perdão dos piratas ser comodamente adiantado) e momentos confusos. O brilho vem no sistema de navegação e no “comportamento” de combate, além de se passar nas ilhas e no mar do Caribe, além de alguns momentos em ilhas africanas.
O mundo aberto é imenso, e o gameplay à bordo do navio é uma espécie de (incrível) jogo à parte, que por mais repetitivo que seja, empolga e garante dezenas de horas de “investimento” nas side-missions (ou simplesmente na complexão de objetivos específicos do jogador). Trazer o enredo às colônias portuguesas e espanholas foi um golpe de mestre, porém, não devidamente aproveitado. Tudo se rendeu às fórmulas antigas, e o que poderia ter trazido vida às originalidades do ambiente das Américas, foi transformado em uma espécie de padrão de “cenário de fundo”. Black Flag é um jogo divertido, dinâmico e bem mais empolgante que seu antecessor, mas já carrega bugs e problemas de acabamento que se tornarão a nova marca registrada da empresa responsável.
A partir do mais recente lançamento, o Unity, encaramos o despreparo em seguir as próprias regras. O game se passa na França algum tempo depois da Revolução Francesa. Bem mais vívido em sua ambientação, com figurantes mais reativos, inteligência artificial melhorada e cenários detalhados como obras de arte, Assassin’s Creed se torna algo bonito de se ver ao longe – mas apenas por alguns momentos. O jogo, lançado com menos de um ano a partir da publicação de Black Flag e os spin-offs da série, não só apresenta saltos de enredo e despersonalização injustificáveis, mas como deixa as amarras de história para trás, esquece de várias pontas soltas, apresenta novos furos e, o pior: é apresentado ao público sem o devido acabamento. Repleto de problemas gravíssimos de funcionalidade, bugs, quedas de frame e erros relacionados ao desempenho, Assassin’s Creed: Unity se transformou rapidamente de projeto (visualmente) megalomaníaco a um dos erros mais crassos cometidos dentre as pequenas falhas de até então.
As ações da Ubisoft despencaram, a empolgação com o título caiu pela metade, as avaliações e reviews atrasaram pela dificuldade ao acesso de um produto terminado, e mesmo assim, as análises apontaram uma queda vertiginosa e terrível de qualidade em relação aos demais jogos. O game se tornou um projeto visual interessante, mas sem conteúdo comparável com os demais. A empresa pediu (mais de uma vez) desculpas aos jogadores e à comunidade, e ao longo de vários meses lançou pacotes de solucionamento de problemas e remoção de erros através das plataformas digitais – e mesmo assim nos deparamos em diversos momentos com um produto final cheio de falhas. O problema é que não tão somente Assassin’s Creed sofreu com o baque das decisões apressadas – praticamente todos os grandes títulos da empresa sofreram os mesmos problemas, e a preferência pelos jogos da companhia regrediu bastante.
E então, recebemos a notícia do lançamento de outro título da franquia ainda no mesmo ano do desastroso quinto título da saga. Com suspeitas de que se passará na Londres vitoriana, espera-se que o próximo jogo possa sanar os problemas técnicos que a Ubisoft encontrou no lançamento de seu antecessor, mas mesmo assim, sabemos que a recuperação da “essência” da franquia dificilmente será recuperada – pelo menos não com o comportamento atual da empresa e o caminho pelo qual a saga tem se direcionado.
Concomitantemente recebeu-se o lançamento de Rogue, a história de um assassino que supostamente havia debandado para o lado dos templários, e agora seria responsável por caçar os membros de sua antiga ordem. Sem grande sucesso, o game não chegou a ser um fracasso em vendas ou análises, mas nos trouxe uma história batida e um sistema melhorado a partir do que já nos havia sido entregue em Black Flag, com o diferencial de estarmos do outro lado da moeda.
Já os spin-offs, seja Freedom Cry e Liberation, trouxeram alternativas muito mais viáveis e interessantes que os títulos principais, tendo, infelizmente, duração bem mais reduzida, mas curiosamente maior esmero que os jogos “centrais”. No primeiro, a história se passa concomitantemente e até um pouco depois do que vivemos em Black Flag, e passamos praticamente no mesmo cenário o processo de liberação dos escravos e ataques piratas contra o tráfico humano, focando na cultura de resistência negra contra o processo “civilizatório” branco – o que por si só, daria um jogaço. No segundo, nos é garantida a história de uma assassina de descendência francesa, africana e indígena, que luta por sua sobrevivência no Golfo do México contra uma cultura silenciadora, racista e machista, que destrói e tortura mulheres e seus papéis na sociedade pós-guerra – o que, mais uma vez, daria em um puta jogo.
Ao mesmo tempo surgem spin-offs menores e jogos paralelos que exploram tudo que o universo (nos games) não exploraria. Jogos se passando na China e envolvendo a temática ninja, a insistência em reaproveitar as mesmas histórias de antes e a de permanecer em períodos históricos “batidos”.
Tendo em vista tantos erros que tornaram uma franquia com tanto potencial e pela qual não só eu, mas muita gente alimentava esperanças e um carinho muito grande, qual o tipo de comportamento que poderia ser tomado para uma espécie de “renascimento”? Que tipo de linha criativa ou técnica deveria ser seguida para evitar a queda total do game em mais um fracasso da indústria – provocado pela própria empresa responsável?
Não é nenhuma fórmula mágica. Não é um milagre, nem uma história super criativa que eu tenho guardada e estou pronto para vender para a Ubisoft caso ela bata na minha porta (mas caso aconteça, tenho sim, viu?).
Por mais complexo que seja um jogo, por mais camadas que ele tenha, por mais dinâmico, inteligente e até mesmo profundo que seu enredo se torne, a regra de ouro é uma: keep it simple. Não precisa se limitar a uma fórmula, ou repetir todas as coisas feitas até então. Limites precisam ser superados. Às vezes até quebrados. Pense bem: o embate entre assassinos e templários e o envolvimento desse conflito na história da humanidade. Essa é a história principal. Nem mesmo a (galhofa gigantesca) dos deuses-alienígenas conseguiu estragar isso de maneira irrecuperável. Tudo que foi feito, foi feito com base nesse conflito e nesse desenlace. Alienígenas, países e culturas diferentes, mecânicas e visuais únicos, tudo parte de uma só ideia – que quando esquecida em nome de preocupação a curto/médio prazo com lucros, bem, dá no que dá (AC Unity é a prova perfeita).
Precisamos de mais assassinos de civilizações e povos “marginais”. De assassinos negros, assassinas, miseráveis, e até mesmo aristocratas (a família Auditore era abastada no início da trilogia de Ezio). Precisamos do retorno aos significados, como o parkour estar relacionado com o voo da águia, que só desce (de maneira certeira) para abater sua vítima. Por mais que se desenvolva e se torne a movimentação realista, não é a fluidez mecânica que garantirá a riqueza dos detalhes – ela virá com a experiência do jogador. Precisamos de assassinos e assassinas baseados em povos do deserto, do sudeste asiático, até mesmo da América Latina continental de uma maneira distanciada dos clichês de até então.
Valiant Hearts, um título minúsculo da Ubisoft, de um escritório funcionando em fator mínimo, conseguiu destaque, premiação e atenção do mundo inteiro através do esmero e da simplicidade. Por que um título como Assassin’s Creed não conseguiria? O que nos resta é esperar pelo próximo jogo.
Comentários
Loading…